Transbordamento da fronteira entre o público e o estatal
(Originalmente publicado na Agência Brasil e na página da Ouvidoria da EBC)
A Ouvidoria da EBC tem apontado um problema recorrente nos veículos públicos, que é a tendência à abordagem oficialista dos fatos em muitos de seus conteúdos, fazendo com que se confundam com o que seria a função dos veículos estatais — são problemas pontuais que às vezes regridem, mas acabam reaparecendo. Ultimamente, no entanto, as rádios EBC têm extrapolado essa medida, resvalando para o território inoportuno do desconhecimento da lei que define o que é autorizado ou vedado aos veículos que compõem o sistema público de radiodifusão.
Aos eventuais leitores desta Coluna, peço um pouco de paciência pelos comentários repetitivos que se seguirão, mas que se justificam pela opacidade do tema para a maioria das pessoas, inclusive no âmbito da própria EBC, conforme já percebido pela Ouvidoria.
Na prática, não é tão simples divisar as nuances que distinguem a complementaridade do sistema de comunicação no Brasil, que é dividido entre público, privado e estatal. Aos dois últimos, a prerrogativa de se confundirem com o que se espera do sistema público, o que é até desejável; mas ao sistema público não é permitido, por lei, adotar ações que são da natureza dos outros dois. Estamos falando especificamente de conteúdos, narrativas, discursos que os usuários recebem pelas agências de notícias, rádios, televisão e outras mídias públicas surgidas ou que venham a surgir através dos incessantes avanços da tecnologia.
A divisão estabelecida na Constituição Federal demarca o território discursivo de cada um dos sistemas, embora à mídia comercial — pela falta de fiscalização do poder público ao setor — seja concedida uma espécie de credencial de livre trânsito, que amplia a abrangência de seus conteúdos e narrativas para além do que a própria Lei permite a qualquer setor que opere por concessão pública, como é o caso da radiodifusão.
Um estudo publicado em 2016 pela ANDI — Agência de Notícias dos Direitos da Infância ilustra bem isso, tendo como melhor exemplo a seção da pesquisa que trata dos programas “policialescos”, onde são apontadas pelo menos nove categorias de violações de direitos consagrados em lei:
“Foram 1.704 ‘Exposições indevidas de pessoas’, 1.580 ‘Desrespeitos à presunção de inocência’, 614 ‘Violações do direito ao silêncio’, 295 ‘Exposições indevidas de famílias’, 151 ‘Incitações à desobediência às leis ou às decisões judiciárias’, 127 ‘Incitações ao crime e à violência’, 39 ‘Identificações de adolescentes em conflito com a lei’, 17 ‘Discursos de ódio ou Preconceito’ e 09 ‘Torturas psicológicas ou Tratamentos desumanos ou degradantes’”.
No âmbito das pautas, o campo estatal da radiodifusão (TV NBR e, no rádio, a Voz do Brasil) talvez seja o mais bem delimitado, porque tem sua missão publicamente definida como a de oferecer aos telespectadores informações sobre as políticas, as ações e o dia a dia do Poder Executivo e dos demais poderes, podendo ampliar-se a outros entes públicos federais.
Mas o território da radiodifusão pública é construído a partir da areia fina e subjetiva que cai desta peneira, e que define sua missão como o compromisso com a democracia e a construção da cidadania — o que, como discurso, são premissas disputadas também pelos dois outros sistemas. Para efeitos práticos, o campo da radiodifusão pública — e é bom lembrar que foi inaugurado no Brasil há apenas nove anos — define-se mais concretamente pelo que não pode ser e pelo que não deve fazer.
A Lei no. 11.652/2008, que criou a estatal Empresa Brasil de Comunicação (EBC) para gerir a parte pública que faltava ao sistema, e já com as alterações introduzidas pela Lei 13.417/2017, determina que o serviço de radiodifusão pública deve observar a “autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo”, e afirma, no parágrafo 1o. do Art. 2o., com redação aprimorada pela nova lei, que é vedada “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão”. É bom frisar que a empresa é estatal, mas os veículos que estão sob sua gestão são públicos e não devem se confundir, principalmente em seus conteúdos, com os do sistema estatal.
Voltando, então, ao problema das rádios EBC, a transmissão, no período de 13 a 17 de março, de cinco peças publicitárias, em formato de radionovelas, sobre o projeto da Reforma da Previdência, fere o parágrafo que veda “qualquer forma de proselitismo”, o que ficou caracterizado por não ter sido feito o devido aviso aos ouvintes de que se tratava de informe publicitário. Também não se compreende, dentro dos preceitos legais, a transmissão, nas rádios públicas, de um programa cujo objetivo é divulgar as Forças Armadas.
O programa Forças do Brasil é transmitido todas as segundas-feiras, às 21hs (horário de Brasília), em rede pela Rádio Nacional de Brasília AM, Rádio Nacional da Amazônia, Rádio Nacional do Alto Solimões, com reprises aos sábados. E é apresentado como uma parceria entre a EBC e o Ministério da Defesa, com a seguinte sinopse:
“Se você quer conhecer o trabalho das Forças Armadas e do Ministério da Defesa, sintonize o seu rádio no programa Forças do Brasil. Você vai saber mais sobre as ações para preservar a soberania de nosso país, as operações de apoio à segurança pública, os projetos sociais, as datas comemorativas e muito mais.”
Ao final, o locutor informa, apenas: “Forças do Brasil, produção das Assessorias de Comunicação do Ministério da Defesa, da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Edição e apresentação Rádio Nacional de Brasília.”
A Ouvidoria reconhece o valor dos serviços prestados pelas Forças Armadas que vêm sendo divulgados pelas rádios EBC, mas considera que esses mesmos serviços devem atender, na radiodifusão pública, lugar, oportunidade de pauta e abordagem jornalística apropriada e pertinente. A Voz do Brasil, programa do sistema da radiodifusão estatal, que é o lugar da prestação de contas ao público das ações dos entes estatais, já tem um espaço dedicado às Forças Armadas.
Ainda conforme a legislação vigente, a prestação do serviço de radiodifusão pública deverá observar a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão. Em linhas gerais, isso implica, também, a transparência das informações que dizem respeito à gestão de conteúdos dos veículos públicos. Neste sentido, é legítimo esperar que o ouvinte seja informado sobre os aspectos da “parceria” que eventualmente resultem em benefícios à EBC e, por tabela, aos veículos públicos.
No programa Forças do Brasil, esta contrapartida não está clara para os ouvintes, ainda mais quando eventualmente sintonizarem, nos seus dials, as emissões de rádios que são das Forças Armadas: a Rádio Verde-Oliva (98,7MHz), do Exército; a Rádio Força Aérea FM (91,1MHz), da Aeronáutica, além das cinco rádios FM e uma rádio web operadas pela Marinha.
A parceria para transmissão de um programa dentro das emissoras públicas torna-se ainda menos compreensível quando se pensa que existem frequências consignadas/outorgadas à EBC que estão cedidas em “parceria” e são operadas pelas Forças Armadas. Operadas pela Marinha: FM 105,9MHz em Corumbá/MS; FM 100,1 em Natal/RN; FM 99,9 MHz em Manaus/AM FM 99,1 MHz em São Pedro da Aldeia/RJ. Operadas pela Força Aérea Brasileira (FAB): FM 91,1 MHz em Sobradrinho/DF; FM 90,1 em Foz do Iguaçu/PR.
O sistema público, o privado e o estatal, por força mesmo de trabalharem com informação, sempre estarão sujeitos ao atravessamento mútuo de seus territórios, mas, em respeito ao público e até mesmo em observância à Lei, é preciso que suas fronteiras estejam bem demarcadas e sejam respeitadas — pelo menos discursivamente, que é a parte mais objetiva da comunicação.
Até a próxima!